Ao longo da história da humanidade, eleger “O Melhor de todos os tempos”, tornou-se um lugar-comum em muitas áreas e atividades. Seja nos esportes, como o futebol, vôlei e basquete, ou nas artes, que vão desde a literatura até o Cinema, definir o melhor ou quem foi mais importante funciona quase que como uma forma de necessidade. As pessoas, a partir de critérios previamente estabelecidos, como inovações promovidas ou marcas significativas atingidas, e que definirão esse ou aquele como o melhor, precisam ter esse conhecimento, com a finalidade de estabelecer referências acadêmicas e até mesmo ídolos globais. Não é difícil, nesse contexto, encontrarmos na internet listas promovidas por veículos ou indivíduos especializados nos assuntos citados anteriormente com essa finalidade: Os maiores jogadores de futebol de todos os tempos; Os melhores cantores do século XX; Os pintores mais importantes da história e por aí vai.
No Cinema, essa história não vem a ser diferente. Quem é o melhor ator ou atriz da história? O Melhor Diretor? E, principalmente: Qual é o Melhor Filme de todos os tempos? O mais importante e mais inovador? Tecnicamente falando, essa seria uma pergunta sem uma resposta exata, tendo em vista que críticos e estudiosos podem acabar divergindo quanto a uma decisão exata (e isso, obviamente, não só no mundo da Sétima Arte). Porém, apesar de não existir essa unanimidade, há um longa-metragem que consegue chegar perto disso, pelo menos quando o critério é falar sobre os mais importantes e mais inovadores filmes já feitos, figurando sempre no topo das mais variadas listas com esse intuito. Ele atende pelo nome de Cidadão Kane.
Lançado no ano de 1941, o filme, que completa 80 anos em 2021, nos narra, de forma não-linear e com o uso de flashbacks, a história da intrigante figura de Charles Foster Kane (Orson Welles), um influente magnata da imprensa e da mídia, que foi inspirado na figura real do também magnata dos meios de comunicação William Randolph Hearst (o que levou o filme até mesmo a ser filmado quase que em segredo, tendo em vista que a forma como a história retrata o seu protagonista possui um forte olhar crítico, fazendo com que Hearst tentasse impedir a produção de acontecer). Ao longo da projeção, acompanhamos um jornalista em busca de descobrir o significado por trás da misteriosa última palavra dita por Kane em vida- “Rosebud”, que o leva a entrevistar pessoas que fizeram parte da conturbada vida passada do magnata e descobrir que, por trás de um homem poderoso, há mais frustrações do que se podia imaginar simplesmente por sua imagem pública.
Dirigido e atuado pelo lendário Orson Welles (1915-1985), na época com 25 anos de idade e fazendo sua estreia como diretor de Cinema, a história por trás do filme, e, consequentemente, o seu caminho para o status de uma das maiores realizações cinematográficas da história, não é das mais simples. Um dos pontos que mais chamam atenção na produção de Kane, por exemplo, é em relação até mesmo a sua autoria. Welles, o diretor, possui créditos também como roteirista, junto com o famoso Herman J. Mankiewicz (que, segundo a história, era uma pessoa próxima de Randolph Hearst e por isso se inspirou nele para criar Kane). Porém, há quem não aceite essa divisão e atribua a Mankiewicz toda a autoria do roteiro, que para o seu tempo, foi considerado como extremamente inovador, por conta da já citada forma como era estruturado. O assunto, além de ter sido abordado recentemente no filme da Netflix Mank, dirigido por David Fincher, rendeu uma série de estudos e debates, sendo um dos mais famosos deles o ensaio de Pauline Kael, “Criando Kane e outros ensaios”, onde ela disserta em cerca de 200 páginas sobre o assunto, defendendo o ponto de vista de que Welles não teve nenhum peso ou importância na elaboração do roteiro de Cidadão Kane.
Por outro lado, existem aqueles que defendem, ou até mesmo conseguem comprovar, a importância de Orson Welles para o processo de construção do mito de Kane. Mesmo que Welles não tenha tido importância nenhuma no inovador roteiro em si, o que muitos também apontam como não sendo verdade, são inúmeros estudos e análises que atribuem ao diretor a verdadeira genialidade e autoria por trás do filme (o que, ainda mais hoje em dia, é cada vez mais aceito como sendo algo até óbvio, tendo em vista que o diretor de um filme, mesmo que não tenha escrito o seu roteiro, é o autor da obra de qualquer forma, pois foi ele quem imaginou/visualizou o que está no papel e levou para as telas). Isso porque, Cidadão Kane, além de diferenciado no roteiro, promoveu também algumas das maiores inovações para a narrativa cinematográfica de seu tempo, por conta da também diferenciada forma como foi filmado, com muitos atribuindo à direção de Orson Welles, junto da operação de câmera de Greg Tolland, que também merece seu devido reconhecimento, como fundamental para criação de uma chamada Linguagem Cinematográfica Moderna.
Entrando mais a fundo nessas tais inovações, podemos citar o grande crítico André Bazin, da famosa revista francesa Cahiers du Cinéma, que com seu texto “A Evolução da Linguagem Cinematográfica”, destaca o filme como sendo revolucionário pelo uso de forma significativa da chamada profundidade de campo nas cenas, que, basicamente, diz respeito a quando a câmera filma um objeto ou pessoa, e a imagem, além de focalizá-los, também focaliza uma área à frente ou atrás deles, o que afeta diretamente a montagem de um filme. Além disso, muitos destacam o uso do que é conhecido como plongée (em francês, ‘mergulho’ e que na linguagem do cinema significa filmar/enquadrar de cima para baixo) e o contra-plongée (enquadramento, por sua vez, de baixo para cima), artifícios linguísticos até então pouco comuns para época.
Hoje em dia, como dito, Cidadão Kane está muito além de uma briga de egos pela autoria de seu roteiro, premiado no Oscar de 1942 como o melhor do ano, ou do debate para definir quem seria o real responsável por trás de sua genialidade. Ao longo de décadas figurando nas mais diversas listas que buscam eleger “O Melhor Filme de todos os tempos”, como as da renomada revista britânica Sight & Sound e as do American Film Institute, seria clichê, se não fosse verdade, afirmar que a lenda de Kane e das personalidades por trás de sua realização foi sendo construída com o tempo, já que o filme foi alvo de algumas críticas negativas no seu lançamento, com todas as inovações citadas anteriormente sendo mal recebidas pelos críticos mais conservadores e habituados com a linguagem convencional do cinema da época.
Apesar de tudo, 80 anos se passaram e o longa de Welles e Mankiewicz é um fato histórico. Um objeto de estudo para compreender a evolução e inovação da arte de se fazer Cinema. Um filme obrigatório para qualquer pessoa que possua um interesse mínimo pela sétima arte e pela sua história e evolução de sua linguagem enquanto arte em si.
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