Após ter feito bastante barulho nos festivais de cinema ao redor do mundo, “Ainda Estou Aqui” foi o escolhido para representar o Brasil na busca por uma vaga no Oscar em 2025. Agora, o filme finalmente chega aos cinemas para o público brasileiro, dando oportunidade de finalmente testemunharmos essa história tão importante e necessária.
Baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda Estou Aqui” é dirigido por Walter Salles (Central do Brasil, 1998) e conta a história da família Paiva, formada pelo casal Rubens (Selton Mello) e Eunice (Fernada Torres) e seus cinco filhos. No início da década de 1970, enquanto o Brasil vivia uma ditadura militar, Rubens é levado subitamente por militares e desaparece.
Em seus primeiros minutos, “Ainda Estou Aqui” começa como uma história familiar com um clima leve. A direção de Walter Salles e o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega moldam cuidadosamente o relacionamento e a proximidade do Rubens Paiva de Selton Mello e da Eunice de Fernanda Torres com seus filhos. Acompanhamos uma família feliz, aproveitando dias ensolarados de praia no Rio de Janeiro em tom de memórias afetivas fortalecidas pela escolha estética da película ao invés de câmeras digitais.
Existe, nesse contexto, uma tensão no ar conforme vemos Rubens em conversas e ações envoltas em certo mistério sobre suas atividades contra a ditadura. São gestos e momentos bem sutis, mas que a personagem de Torres parece sempre pressentir algo — como nas cenas em que os sons intensos de helicópteros ou militares passando no horizonte perturbam a existência da personagem.
A partir do momento em que Rubens é levado por conta dessas ações, que, nessa primeira parcela de filme, não ficam explícitas, uma virada de chave acontece. As cortinas da casa são fechadas à força pelos agentes governamentais. Repentinamente, o clima familiar tão agradável, da alegria que parecia interminável, vem dar lugar ao de um longa-metragem de terror. Os ambientes se tornam tomados por sombras, por um clima soturno, e até a protagonista de Torres é enquadrada, em determinado momento, como se estivesse isolada num corredor de uma casa abandonada.
O sentimento claustrofóbico se intensifica ainda mais nas cenas em que a personagem é levada para um quartel para prestar depoimento. O acerto da direção de Salles, a partir desse momento, não se dá apenas pelo clima de suspense presente nessa virada de tom em si, mas também pela sutileza com que o diretor escolhe abordar os horrores da ditadura. As sequências se resumem mais a um suspense psicológico do que uma exploração explícita da tortura e afins, que, por sua vez, só aparece em pequenos flashes que mais sugerem os acontecimentos do que o contrário.
Daqui em diante, se sobressai o drama de uma mãe sozinha lidando com a sua família. A ausência do personagem de Selton Mello, do pai presente e dedicado canalizado na presença de tela marcante do ator, é sentida durante todo o restante da projeção. Os momentos, mais uma vez, são singelos, como a cena em que a câmera de Walter Salles se posiciona na cabeceira da mesa, apenas para que o seu espectador consiga sentir a ausência do pai de família conforme a cadeira vazia abre espaço para que Eunice seja enquadrada sozinha com seus filhos ao seu redor.
“Ainda Estou Aqui”, porém, é muito mais do que esse filme que retrata os horrores e os crimes da ditadura por meio do esfacelamento de uma família feliz e a subsequente luta de uma mãe para restabelecê-la como pode diante desse cenário. Aqui, vemos um longa sobre o papel fundamental de registros de vários tipos para a preservação de memórias e da história. Uma narrativa que exalta o fato de que um simples documento, ou uma série de vídeos e fotos caseiras repletas de sorrisos, podem ser tão fundamentais quanto uma luta armada no combate ao mal sempre à espreita da família que vemos em cena.
Em diferentes momentos, os personagens manejam constantemente fotos da família e de Rubens. A filha mais velha do casal (Valentina Herszage) carrega consigo uma câmera caseira para registrar instantes de alegria, mas também os de tristeza — como aquele em que a família se vê abandonando a casa onde colecionaram felicidade. A projeção sempre exalta o poder e a necessidade dessas imagens, que por vezes tomam conta da tela por completo. Em paralelo, uma das vitórias de Eunice é a retirada de uma certidão de óbito de seu marido, como forma de comprovar os crimes cometidos pelo regime militar.
No final, vemos Eunice, agora interpretada por Fernanda Montenegro, sofrendo de Alzheimer, alheia, na maior parte do tempo, à sua própria luta ou de suas próprias memórias por conta de sua condição no fim de sua vida. Nesse momento, restam, portanto, justamente esses registros que a todo momento são exaltados por Walter Salles. São todas as fotos, filmetes, documentos e reportagens — coletados em um fichário pela própria Eunice de Torres/Montenegro numa passagem anterior a esse epílogo— que ficarão para contar essa história quando a própria memória do ser humano falhar pela ação do tempo e da natureza.
“Ainda Estou Aqui”, portanto, é um filme que opta por passar sua mensagem de uma forma sensível, do drama familiar e do poder das imagens que ficam para a posteridade muito mais do que aquelas que simplesmente chocam no tempo presente de uma projeção. As atuações de gala do seu elenco (sobretudo Fernanda Torres e seus olhares e gestos marcantes), aqui, chegam para ser o complemento de luxo para uma história forte, e que acerta o tom para sua própria conscientização e preservação enquanto cinema e história em si. Uma outra e eficiente maneira de se dizer “Ditadura Nunca Mais”.
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